terça-feira, 25 de setembro de 2012

O Fora Collor: a luta contra o neoliberalismo


No livro A era Collor - da eleição ao impeachment, cujo lançamento ocorre hoje, em São Paulo, Rodrigo Carvalho faz um balanço deste evento fundamental da história recente do Brasil e do papel que a juventude, a esquerda e os comunistas tiveram nela.

Por José Carlos Ruy


A história é uma ciência difícil, principalmente quando trata do tempo presente. Este desafio  foi enfrentado com brilho por Rodrigo de Carvalho no livro A era Collor - da eleição ao impeachment, que a Fundação Maurício Grabois e a Editora Anita Garibaldi acabam de lançar.

Para complicar, Rodrigo enfrentou não apenas um tema contemporâneo, que completa 20 anos: em 29 de setembro de 1992 a Câmara dos Deputados aprovou o processo de impeachment do presidente Collor, afastando-o do cargo. Rodrigo enfrentou um tema histórico no qual, juntamente com o diretores da União Nacional do Estudantes Lindbergh Farias (presidente) e Orlando Silva Jr (tesoureiro), teve intensa atuação no movimento Caras Pintadas que levou às ruas a exigência de saída do presidente que inaugurou o neoliberalismo no Brasil. 

O livro de Rodrigo de Carvalho está à altura do desafio. Ao cobrir um período histórico que inclui a campanha das Diretas Já, o fim da ditadura militar e a eleição presidencial de 1989 (na qual Lula foi o fantasma que amedrontou a classe dominante brasileira), ele descreve o painel necessário para a compreensão da encruzilhada histórica que o país vivia e para o entendimento do levante da juventude e dos brasileiros contra Collor. Painel enriquecido com o depoimento de alguns personagens chave naquele movimento, como Renato Rabelo, hoje presidente nacional do PCdoB (que foi o primeiro partido a propor o Fora Collor), Orlando Silva Jr, Oliveiros Ferreira (secretário de redação do jornal O Estado de S. Paulo), os senadores Pedro Simon e Eduardo Suplicy, e o próprio Fernando Collor de Mello, que hoje também é senador.

Trata-se de uma obra fundamental para o conhecimento da história recente do Brasil. Vermelho publica, a seguir, a conclusão do livro.


Conclusão: vinte anos depois
Por Rodrigo Carvalho

Momentos históricos relevantes para a vida de um país ou para o mundo precisam de certo tempo para ser avaliados. Não é da noite para o dia que tiramos de um fato todas as suas consequências e verificamos se elas se sustentam.

No período imediatamente posterior ao dia 11 de setembro de 2001, o historiador Eric Hobsbawm foi chamado a analisar aquele que provavelmente seria o ato inaugural do século 21. A principal opinião do autor de A era dos extremos era a de que qualquer análise imediata teria de ser tomada com cuidado. Só o tempo ajudaria a decifrar melhor os atentados às Torres Gêmeas.

Passados vinte anos do processo de impeachment de Fernando Collor de Mello, é possível definir o momento atual do Brasil como de estabilidade institucional. Consolida-se um ciclo de desenvolvimento político, econômico e social. Podemos identificar, mesmo com opiniões diversas sobre os caminhos agora trilhados pelo país, um período de consolidação democrática.

O impeachment de Collor ocorreu em momento inicial da nova experiência democrática. O movimento cívico-popular que possibilitou o encerramento antecipado daquele governo foi importante para a formação de nossas experiências políticas.

Poucos foram os estudos até o momento sobre esse fenômeno histórico e político, mas as características e a importância do movimento Fora Collor podem ser situados em patamar semelhante ao do movimento das Diretas Já. Ambos representam os mais importantes acontecimentos políticos do período da redemocratização do país. Muitos são os elementos que levam a essa conclusão.

A semelhança mais expressiva é o componente de participação social através de ações espontâneas e ao mesmo tempo articuladas por setores sociais organizados, como entidades, partidos e demais instituições.

Tanto o movimento das diretas quanto o que resultou no impeachment representaram o anseio de uma maioria que não concordava com os rumos do país em seus respectivos contextos.

Outro elemento importante é a aproximação histórica. Os movimentos guardam relação intrínseca tanto com o início do processo de abertura democrática quanto com sua consolidação, demonstrando que o Brasil buscou, por caminhos próprios, identificar quais maneiras de organização política, participação popular e transição institucional levariam à formação do novo Estado brasileiro e de suas estruturas de funcionamento.

Quando analisamos as características políticas que movimentaram a campanha das diretas e o movimento Fora Collor, logo percebemos tratar-se de eventos que ocorreram em meio a condições adversas.

No primeiro caso, um deputado federal novato, Dante de Oliveira (PMDB-MT), buscou assinaturas suficientes entre deputados e senadores para apresentar uma emenda constitucional propondo a instituição das eleições diretas para presidente da República. É certo que houve outras propostas em legislaturas anteriores, mas foi essa ação que permitiu deslanchar o primeiro ato do movimento. As assinaturas foram colhidas graças à ação perspicaz do deputado, à mobilização de uma oposição crescente e, em certa medida, à divisão da base aliada. Havia, sobretudo, certo ceticismo dos parlamentares quanto à oportunidade da emenda e sua capacidade de prosperar. O mesmo ceticismo pôde ser verificado quanto aos resultados que poderiam advir de uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito proposta para investigar as acusações de um irmão do presidente da República colhidas por um senador, Eduardo Suplicy (PT), de um partido minoritário. Nesse caso havia fatos relevantes para prosseguir com a abertura de uma CPI, mas a hipótese de impeachment se revelava, em princípio, distante.

Outro elemento político relevante diz respeito ao enfraquecimento dos centros de poder. Os governos dos presidentes da República João Baptista Figueiredo (PDS) e Fernando Collor de Mello (PRN), absolutamente distintos na política e na ideologia, padeciam com semelhantes crises econômicas sistêmicas e conjunturais. Sofriam, ainda, os efeitos da falta de unidade política. Esses fatores, somados ao fracionamento das classes dominantes e a uma profunda crise ética, tornaram ambos os governos incapazes de reagir e influenciar os rumos políticos no final de seus mandatos.

O papel cumprido pela imprensa e pela opinião política, com posições diferentes entre os diversos meios de comunicação, mas com a obrigatória cobertura dos fatos (mesmo a Globo, que se atrasou em cobrir as manifestações em ambos os movimentos, teve de se render parcialmente aos acontecimentos), também compõe o conjunto de características políticas presentes tanto nas Diretas Já quanto no Fora Collor.

Os movimentos tiveram amplitude em seus respectivos contextos históricos. Contaram com a participação de amplos setores da sociedade e envolveram matizes políticas e ideológicas as mais diversas. Essa característica provocou disputas internas também no campo oposicionista.

Enquanto forças conservadoras se dividiam entre a manutenção de determinados privilégios e as mudanças estruturantes que abriam mercados e capitais, as forças progressistas tinham uma pauta desenvolvimentista, com forte reivindicação de programas e projetos de resgate social. A unidade era dada na palavra de ordem como objetivo maior que unificava a todos.

Os resultados de ambos os movimentos demonstram o quão complexas são as ações históricas relevantes, nas quais frequentemente se verificam vitórias e derrotas parciais. No caso das Diretas Já tivemos uma derrota no resultado, mas ao mesmo tempo uma vitória relacionada ao início de uma transição. No movimento pelo impeachment de Collor, o que tivemos foi uma vitória no resultado e uma paralisação momentânea da aplicação do modelo neoliberal, que seria retomado posteriormente no governo Fernando Henrique Cardoso. Porém, o principal elemento a unificar esses dois processos foi o fato de terem contribuído sobremaneira para a construção da jovem democracia brasileira.

É possível afirmar que o movimento das diretas possui já em nossos dias certa unidade de explicações e interpretações sobre seu significado para o país. O Fora Collor ainda carece de um debate mais apurado sobre os fatos, capaz mesmo de explicitar melhor as diferenças interpretativas sobre seu significado, ainda que não seja possível alcançar maior unidade de interpretações sobre esse fenômeno.

No debate sobre o processo político que resultou no impeachment, confrontam-se argumentos a favor e contra a tese da aplicação do projeto neoliberal no Brasil a partir do governo Collor. O debate entre essas duas correntes de opinião estabelece um importante ponto de partida para a compreensão do Fora Collor. Este livro parte do pressuposto de que houve no governo Collor a aplicação do modelo neoliberal. Desde o início, os princípios reunidos no chamado Consenso de Washington são claramente esposados pelo candidato Fernando Collor, cujo governo agiria, mais tarde, de maneira absolutamente coerente com as posições chamadas neoliberais.

A vitória eleitoral de Fernando Collor de Mello em 1989 não foi obra do acaso ou um “acidente de percurso”, como alguns intelectuais e meios de comunicação procuraram e procuram interpretar. O candidato Collor foi o mais radical e consequente defensor das teses neoliberais.

Isso fez com que a unidade, mesmo frágil, das classes dominantes ocorresse naquele momento, em um esforço extraordinário para evitar uma guinada do país à esquerda. As propostas de Collor sobre a política econômica eram bastante claras e foram defendidas entusiasticamente pelas classes dominantes e seus veículos de comunicação, seja às vésperas das eleições, seja mais tarde, no início do governo. É certo que a linguagem direta com o povo e uma competente estratégia eleitoral possibilitou a Collor uma vantagem inicial e a consolidação de seu nome nas eleições, mas isso deve ser compreendido no contexto mais geral que emoldura o significado da candidatura Collor naquele momento.

Collor representou os anseios e as vontades de uma elite em reorganização, embora fragmentada em diversas candidaturas, inclusive por segmentos econômicos – como a agricultura, o comércio, a indústria e outros. O candidato Collor unificou as classes dominantes “na marra”, impondo-se como o único capaz de vencer a esquerda em ascensão. Parte de seu discurso enchia de esperanças uma massa de trabalhadores e trabalhadoras desempregados ou com baixos salários, gente que sofria com a escalada inflacionária e se indignava com o fracasso econômico pós-redemocratização. Tal situação representou campo fértil à ascensão de um líder forte, capaz de “colocar o país nos eixos”. É nesse contexto que Collor apresenta um programa baseado em reformas econômicas, administrativas e políticas com o objetivo de colocar o Brasil no centro da “modernidade”, abrindo o país aos capitais e produtos externos e oferecendo, assim, produtos de qualidade aos que tinham capacidade de comprar. Collor também propunha o enxugamento da máquina pública, a diminuição de gastos, o encerramento do ciclo deficitário das estatais – por meio das privatizações – e a liberdade plena à iniciativa privada. Pretendia com essas medidas, declaradamente, golpear a corrupção, impor uma ordem política acima dos partidos e encerrar de uma vez por todas o ciclo caracterizado pelo modelo desenvolvimentista conservador dos militares, considerado esgotado.

A eleição presidencial de 1989 selou a retomada da vida democrática no Brasil. Apesar das críticas relacionadas ao modelo de democracia que desde então se formou, é importante considerar que a experiência do final dos anos 1980 foi fundamental para a consolidação da transição rumo à normalidade institucional. Partidos, entidades, movimentos, imprensa e demais forças vivas da sociedade passaram a se manifestar livremente. À parte os questionamentos sobre o papel do poder econômico ou sobre possíveis erros e insuficiências, após 29 anos de ausência do voto popular a eleição presidencial de 1989 contagiou o Brasil, emocionou e envolveu a sociedade numa demonstração de aceitação e legitimação das regras estabelecidas para se definir quais lideranças e forças políticas ocupariam o poder central do país.

O governo Collor representou o início de mudanças econômicas profundas, por meio das quais se tentou substituir um modelo caquético, baseado em uma forma de dirigismo estatista conservador, pelos princípios neoliberais do Consenso de Washington: controle da inflação baseado em cortes de gastos públicos; enxugamento da estrutura do Estado, com a diminuição de seu papel na economia; defesa das privatizações como forma de reduzir o papel do Estado, valorizar os mercados e comprimir gastos públicos. A abertura econômica surge no discurso da globalização neoliberal como a medida que unificaria economias, romperia as fronteiras nacionais e estabeleceria uma integração mundial através das relações de mercado. Teríamos, dessa forma, o livre trânsito de produtos e tecnologias e a saudável concorrência entre empresas e demais instituições. Tudo com o objetivo de promover o princípio fundamental do liberalismo: relações econômicas livres, sem as amarras de regras “exageradas” que apenas atrasariam o desenvolvimento.

A fim de libertar a economia da “opressão” do Estado, também se faria necessário acabar com as regulamentações estabelecidas pelos governos, permitindo a livre negociação entre os entes representativos (entre empresas e entre patrões e empregados). Por fim, a redução do papel do Estado permitiria a diminuição dos déficits públicos e, consequentemente, a diminuição de impostos.

Entre as opiniões contrárias à tese de aplicação do neoliberalismo encontra-se a posição do próprio presidente Fernando Collor, que se posiciona como um social liberal, de acordo com a tese desenvolvida pelo teórico italiano Norberto Bobbio e defendida pelo sociólogo brasileiro José Guilherme Merquior. Collor evoca, como base de sua argumentação, suas preocupações (sinceras ao que parece) com sua base política principal: os menos favorecidos. Pensando neles é que teria buscado desenvolver uma rede de proteção social baseada na educação, com escolas em tempo integral, em modelo claramente tomado de empréstimo do antropólogo Darcy Ribeiro. Ainda na visão do ex-presidente, seu governo também teria sido pioneiro na construção de um modelo de desenvolvimento baseado na economia sustentável, com forte preocupação com a resolução de nossos problemas ambientais.

Outra vertente das mesmas ideias — contrárias à tese da aplicação do neoliberalismo por Collor — pode ser encontrada nos argumentos do economista Roberto Campos. O autor de A lanterna na popa assevera que o desenvolvimento do capitalismo no Brasil teria sido organizado desde sempre pelo Estado. Para Campos, em nenhum momento o livre-cambismo próprio da ideologia liberal teria sido dominante em nosso país. Campos busca oferecer uma saída política aos defensores do neoliberalismo, identificando no governo Collor um “acidente de percurso” e desvinculando dessa forma o projeto neoliberal da derrota sofrida por Collor com o impeachment.

Um dos mais consequentes intelectuais defensores do liberalismo, Oliveiros da Silva Ferreira também se posiciona radicalmente contra a existência do neoliberalismo no governo Collor. Considera que no Brasil não se desenvolveram ainda as condições para a plena liberdade de mercado. Para Oliveiros Ferreira, sequer houve a aplicação do liberalismo de corte mais “clássico”. Por vias transversas, portanto, Ferreira chega a conclusões semelhantes às de Roberto Campos: o Estado brasileiro foi o principal indutor da economia e isso, à luz dos princípios liberais, representa uma “não regra” no que tange à liberdade dos homens.

Ocorre que, se analisamos os princípios teóricos a partir das realidades concretas, nenhuma ideologia moderna (e ficamos nesse nível de comparação) pode ser considerada plenamente aplicada. Isso serve para experiências históricas tão distintas quanto a Revolução Francesa e a Independência dos Estados Unidos, nos marcos do pensamento liberal, ou a Revolução Russa e suas consequências no que respeita à aplicação do socialismo. Em princípio, nenhum modelo teórico jamais foi inteiramente congruente com suas tentativas de implementação prática. No Brasil, em especial, sob a influência de variadas correntes políticas e ideológicas ao longo de nossa formação, experimentamos diversas “misturas” entre receituários de origens diversas, o que se aplica também às questões ideológicas.

O que podemos depreender das afirmações de intelectuais como Roberto Campos e Oliveiros Ferreira é que, na verdade, a aplicação do liberalismo no Brasil, como também de sua radicalização neoliberal, ocorreu sempre a partir de sua própria negação: o Estado. Isso, contudo, não invalida as premissas de sustentação da ideologia neoliberal emergente, primeiro, nos países centrais, a partir dos quais se alastrou para os países periféricos, como o Brasil — não sem entrar em choque com suas realidades políticas e culturais. 

Portanto, apesar dos sinais aparentemente contraditórios, é correto, sim, afirmar que o neoliberalismo, em nosso país, foi introduzido pelo governo Collor. Na área monetária, o confisco da poupança, principal medida intervencionista, seguiu à risca uma premissa do economista Milton Friedman, que propunha o combate à inflação por meio da restrição do meio circulante. Na área fiscal, o aumento de impostos — outra medida importante, aparentemente contrária aos princípios do neoliberalismo — foi adotado a partir da necessidade de equilíbrio das contas públicas, esta sim uma regra do Consenso de Washington, que com ela pretendia restabelecer o desenvolvimento para que se pudesse, posteriormente, voltar a diminuir a carga tributária. Em torno a essa questão havia ainda, é bem verdade, a disposição do presidente Collor em reduzir a burocracia tributária unificando os impostos.

Outra medida adotada pelo governo Collor — esta sim em franca contradição com os princípios da liberdade de mercado — foi o tabelamento de preços e salários, justificado como temporário e vital para o controle da inflação. Vale destacar que os salários foram congelados com defasagem inflacionária e os preços tiveram aumento significativo antes do tabelamento.

Na área do comércio exterior a principal medida foi a liberação das tarifações sobre os produtos estrangeiros. As alíquotas se tornaram por vezes menores; em outros momentos foram zeradas. Houve alterações na política cambial, por meio das quais se adotou um modelo de câmbio flutuante. As moedas estrangeiras, e o dólar como moeda padrão, passaram a ter seus valores diante do real determinados de acordo com as variações de mercado. Além disso, com a liberação dos controles administrativos sobre importações e exportações, foram eliminadas as exigências burocráticas e operacionais. Tudo isso permitiu ao governo Collor realizar, como parte de seu programa, a maior abertura econômica do Brasil em todos os tempos.

É possível, contudo, que tenha se dado no campo da gestão pública a mais literal e não questionada aplicação dos preceitos neoliberais.

Por meio da chamada reforma administrativa buscou-se a diminuição do funcionalismo público, seja através de estímulos às demissões (com premiações para quem se autoexonerasse), seja, posteriormente, através do recurso a leis facilitadoras de demissões em massa ou a medidas administrativas que permitiam “encostar” os funcionários. O plano de privatização, por sua vez, possibilitava ampliar receitas e cortar gastos com as empresas deficitárias. Porém, embora fizessem parte da reforma do Estado, as privatizações constituíam um capítulo à parte. Além da convicção ideológica na necessidade de diminuição do ativismo estatal no terreno econômico, elas também ofereciam condições para a atração de capitais externos em um novo ciclo de investimentos de multinacionais no país.

Esse conjunto de decisões políticas e econômicas tomadas por Fernando Collor de Mello demonstra a real natureza de seu governo.

Talvez um dos poucos consensos quanto à sua gestão na Presidência da República seja o de que o programa implementado correspondeu exatamente ao proposto na campanha e na posse. As privatizações iniciadas no governo José Sarney tiveram real consequência durante o governo Collor. A abertura econômica foi organizada e aplicada em seu governo. Implementou-se uma proposta de reforma administrativa baseada no enxugamento da máquina pública e na diminuição do papel do Estado na sociedade. Transformações econômicas e políticas profundas foram operadas.

Hoje o receituário neoliberal — antes propalado como única saída para os povos e como solução para o alcance de uma sociedade equilibrada e harmoniosa — dá mostras de fracasso no Brasil e no mundo.

A grave crise econômica que presenciamos é apontada como consequência direta do modelo que surgiu para “tirar o mundo da crise”. Ao contrário disso, o que se aplicou na prática foi a “livre” circulação de moedas e produtos, bem como uma série de outras medidas que fragilizaram os Estados nacionais com o objetivo de facilitar novos modelos e blocos econômicos, unificando moedas e exércitos e concentrando poder. Tudo isso está em declínio hoje, a começar do sistema financeiro mundial.

Aqueles que no passado defenderam o neoliberalismo parecem hoje desnorteados. Passaram a ignorar sua existência, diversificando a crítica, fragmentando as responsabilidades, procurando oferecer uma interpretação diluída de seus resultados. Chegam a considerar que o neoliberalismo é um modelo que não existiu. Repetem, dessa maneira, o episódio narrado por Gabriel Garcia Márquez em Cem Anos de Solidão: quando, após um massacre de trabalhadores na fictícia Macondo, os moradores simplesmente passaram a ignorar o fato, a história deixou de ser contada até virar lenda — todos simplesmente deixaram de acreditar que poderia ter havido um massacre de trabalhadores. Mas ele existiu! E, no caso do modelo neoliberal, ainda existe. O neoliberalismo é ainda hoje, em nossos dias, o modelo predominante no mundo.

Dirão que não é possível aplicar o neoliberalismo por ser ele utópico.

Dirão que sempre haverá a necessidade da presença do Estado. Mas o que se constata, na verdade, é que as medidas previstas no chamado Consenso de Washington — síntese mais acabada das teses neoliberais — continuam sendo aplicadas nas condições objetivas de cada país, mesmo que nações como o Brasil tentem, na atualidade, livrar-se das medidas tomadas no passado com o fito de privilegiar grupos econômicos poderosos — a começar do sistema financeiro, carro-chefe da atual estrutura do capitalismo.

É de grande poder explicativo a tese segundo a qual, com a vitória eleitoral do sociólogo Fernando Henrique Cardoso (PSDB), o presidente Fernando Collor foi substituído por um quadro mais compromissado com as classes dominantes na aplicação do neoliberalismo. Fernando Henrique governou o Brasil e implementou o receituário neoliberal com uma agenda ainda mais agressiva e consequente nas mudanças de paradigma da política econômica do país. É importante considerar que a tese da não existência do neoliberalismo foi pautada inicialmente por intelectuais ligados ao ex-presidente da República e consagrada pelo próprio FHC, que também chegou a se considerar um socialliberal. A negação do neoliberalismo representa, nessa perspectiva, uma resposta política ligada à tentativa de desvincular-se do modelo econômico proposto e implementado no país, bem como de suas consequências.

A continuidade da aplicação do modelo neoliberal com o governo FHC, contudo, não significou a simples substituição de um quadro político por outro. Houve luta política no meio dessa transição, com intervenções e disputas dentro do governo Itamar Franco e no processo eleitoral que se seguiu posteriormente. Nessa batalha, as forças políticas contrárias ao paradigma neoliberal não conseguiram reunir condições suficientes para vencer as eleições e substituir esse modelo.

O novo bloco histórico, a nova maioria política capaz de substituir gradualmente o neoliberalismo somente alcançaria o poder de Estado a partir da eleição de Luiz Inácio Lula da Silva, ocorrida em 2002, quando já se configurava um momento político de esgotamento desse ciclo de (não) desenvolvimento.

Passados vinte anos do impeachment de Fernando Collor, o Brasil vive um momento de consolidação democrática e institucional. A presidente da República é uma combatente de esquerda, torturada durante a Ditadura Militar. Um fato de grande significado, a provar que, com o passar dos anos, a razão histórica não se revelou ao lado dos apoiadores do regime autoritário, mas, ao contrário, dos jovens lutadores que enfrentaram com coragem a repressão.

Em 2012, o Sport Club Corinthians Paulista tornou-se, pela primeira vez em sua história, campeão da Copa Libertadores da América, um título esperado por gerações. A Rede Globo mostra o que de melhor sabe fazer com a remontagem da novela Gabriela, baseada no romance homônimo de Jorge Amado. A inflação continua sob controle, um dos poucos bons legados do governo Itamar Franco, aprofundado no governo Fernando Henrique Cardoso.

O ex-presidente Fernando Collor de Mello, esse personagem extraordinário da vida política do Brasil, reencontrou a vitória nas urnas, elegendo-se senador da República por Alagoas. No mesmo Senado Federal encontra-se hoje o líder dos caras pintadas, o ex-presidente da UNE Lindbergh Farias (PT-RJ), em trajetória política ascendente.

Nossos meios de comunicação de massa continuam cumprindo o papel histórico de representar segmentos, opiniões e ideias das classes dominantes. Mesmo com contradições, pontos de vista distintos e disputas de mercado e de leitores, criam a unidade ideológica em defesa do liberalismo e de suas correntes majoritárias. Hoje críticos das ações desregulamentadas dos capitais financeiros, os meios de comunicação não fizeram, em nenhum momento, a esperada autocrítica de sua defesa intransigente do neoliberalismo.

Seja como for, o Brasil respira uma atmosfera de maior liberdade. 

Para chegar à situação atual, como pudemos conferir ao longo deste livro, o país precisou percorrer seus próprios caminhos. A construção de nossa jovem democracia foi um processo particular, que conheceu os defeitos e as virtudes de um país jovem e em formação.

Do livro Rodrigo de Carvalho. A Era Collor: da eleição ao impeachment. São Paulo. Fundação Maurício Grabois / Editora Anita, 2012

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